terça-feira, 29 de maio de 2012

O Exame e o Ensino Superior

Escrito por Afonso Botelho








«...Por vezes, em consequência da execução da pena de morte, há uma cabeça que se separa do corpo e um corpo que se separa da alma. Na execução da pena de exame, há certamente muitas cabeças que deixarão de pensar, o que é o mesmo que dizer que se separaram para sempre das benemerências do Espírito.

Quem poderá esquecer-se da agressividade mortífera do estudo preparatório para exame?! Uma preparação assim - quem não a sentiu? - transforma-se na técnica mais decisiva de nos cindir por dentro, até atingirmos a perfeição de haver um outro que pensa por nós. Esse outro coincidirá com a imagem do juiz que espera a hora final do exame para nos devolver à Natureza, donde viemos, classificando-nos com os mesmos critérios com que se classificam insectos espetados por alfinetes».

Afonso Botelho («A Pena de Exame», in «Escola Formal», n.º 4).


«O ensino oral da literatura e da filosofia, como também o da história, só tem valor educativo quando transmitido por artistas inspirados e eloquentes. O professor sedentário, que se senta e preside aos trabalhos escolares, que murmura correctamente a lição de apontamentos colhidos em livros alheios e que verifica se os alunos são capazes de fixar, de repetir, ou pelo menos de resumir o que ouviram durante o ano lectivo, está muito longe do ideal do magistério. Quanto mais impessoal quiser ser, em sua didáctica, o professor que desligue o seu espírito e a sua alma da relação afirmativa com o objecto do ensino, tanto mais degradará a sua função de ministro da cultura.

Só o crente pode ser mestre, só o homem esperançado é capaz de conceber os argumentos, as provas e as demonstrações que iluminam e aquecem as almas dos seus conviventes. O didacta que se limite a expor a ordem de um programa, para habilitar o aluno a responder a um interrogatório ou exame; o didacta que não exerça a crítica, que não formule juízos de valor, que não relacione as ideias com os sentimentos; enfim, o didacta que não se entusiasme - realizará um ensino frio, baço e infecundo. O verdadeiro ensino da filosofia é incompatível com a neutralidade restrita de obediência aos estatutos, com a imparcialidade e a impessoalidade.

(...) O que magister dixit quanto a bibliografia é quase sempre respeitado pelos alunos, pelo que os professores não deixam de recorrer a este processo eficaz de unificação cultural. Assim desviam a atenção dos alunos, assim evitam perturbações no ensino, sem que por isso estejam livres de que um escritor leigo consiga com um opúsculo modesto esclarecer o que o clérigo não explicou bem nas suas lições magistrais. O aluno extremamente dócil aceita do "magister" o aviso contra os escritores que não seguiram a carreira universitária, mas o estudante de espírito livre, aquele que prefere julgar por si a julgar por outrem, não deixará de completar a informação bibliográfica, descobrirá bons livros que o professor não citou por julgar maus, e acabará, muitas vezes, por encontrar uma tradição cultural que contradiz o dogmatismo da escola».

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).






O EXAME E O ENSINO SUPERIOR


Mais do que fixar o que o aluno deve aprender, importa a um sistema de ensino superior valorizar a interrogação, ou a possibilidade prévia, do que aprende, de rejeitar a matéria fixada, e nos termos em que se fixou. Tal condição, que é própria do grau superior do ensino universitário, consente e promove o exercício da inteligência do adolescente na sua função de discriminar e dinamizar o saber.

Interrogar é, assim, o verbo que proporciona ao espírito a manifestação da inteligência, do intelecto activo, antecedente da enunciação da «matéria», que aquele, primeiro, identifica e, depois, escolhe.

Digamos que da precedência da interrogação depende a liberdade do ensino e não, como é usual dizer-se na linguagem de economia política, do acesso de todos, a todos os graus do saber.

O fluxo das gerações de aprendizes, crescendo em progressão geométrica e correndo em avalanche para as fontes disponíveis de licenças de trabalho, gera-se na ideia de igualdade e não na de liberdade, como a propaganda democrática se empenha em fazer crer.

Será o organismo social naturalmente obrigado a reagir perante as consequências práticas de tão abstracta e inviável ideia. Todavia, os responsáveis políticos pela educação supõem que a eles cabe a livre iniciativa das medidas para conter tal avatar. Deste modo se amanham as reformas do ensino com o remédio da doença que previamente se inoculou e sempre com a assinatura dos ministros respectivos. As vítimas reais são estudantes, a quem se vão criando os obstáculos para os impedir de serem estudantes.

Assim como a divisão constitui a operação imediatamente inversa da multiplicação, o «numerus clausus» constitui a consequência imediata deste absurdo.

O exame é, contudo, o obstáculo mais grave exactamente porque inverte o sentido da interrogação, dando toda a iniciativa ao examinador e afastando a «matéria» da individuação intelectual do estudante, da sua capacidade de identificação e de escolha.

Sem interrogação não há pensamento. E pensadores deverão ser, por definição, os estudantes do ensino superior.

Se durante os primeiros graus do ensino é indispensável criar virtudes intelectuais para se poder pensar, no grau superior, trata-se de exercer o pensamento na matéria que mais enigmática e interrogável se apresentou a cada estudante. Retirando ao aluno a possibilidade de escolher o enigma, ou a propriedade do interrogável, retiramos-lhe o estímulo para continuar a reassumir a interrogação. Ora, «a interrogação que não se reassume a cada instante do pensamento é, dizemos, tão-somente pergunta ou procura, infecundo interrogar ou já estéril no qual se torna vã toda a resposta» (1).



Afonso Botelho




Pela perda da liberdade de encontrar o enigma próprio, o aluno, sujeito a exame, sente-se como o expropriado, vazio de conteúdo, sem estima pelos conhecimentos que não lhe pertencem; pela perda das formas de pensamento, emergentes da interrogação que perdura, o examinado deseja ansiosamente esquecer tudo que aprendeu, logo a seguir ao exame. Invertido o sentido da interrogação, o único, portanto, que continuará cumprindo o seu dever de interrogar, mais correctamente, é aquele a quem compete apenas ensinar.

Nestes termos, o ensino superior, afectado pelo exame, no acesso e na saída, dirige-se às faculdades menos criadoras e mais inferiores da mente humana. Sem atender às leis da memória que iluminam um vastíssimo campo, de limites ainda desconhecidos, desde a consciência de si próprio às fronteiras supra-sensíveis com o «outro», o exame sujeita o candidato ou a profissional, no ingresso para a universidade e no egresso para a «vida», a um interrogatório que contraria todas aquelas regras, incluindo as de identificação do examinando consigo mesmo.

Este desacerto da subjectividade do discente com a objectividade do ensino tem a sua confirmação plena nas formalidades do exame que se iniciam com a exigência de apresentação do bilhete de identidade. A partir dessa primeira exigência, todo o ritual se desenvolve no sentido de anular a individualidade do estudante e também a do professor. Disfarçada com o sentimento moral da imparcialidade, que o comum das pessoas intervenientes no exame (examinador, examinando, família do examinando) aceita e até reclama, volta a ideia de igualdade a ser causa de uma distorção social irreparável: a transformação do professor num juiz, a quem se retira, como progressivamente se tem feito à Magistratura, o «sagrado» dever de aplicar a lei universal ao caso singular.

Efectivamente, tanto o legislador como o que governa, pautando os defeitos pessoais ou as imperfeições humanas pela ficção socializante da igualdade dos homens (e das mulheres), elaboram leis, já não universais, mas apenas gerais, em que tentam prevenir todos os casos particulares, ou emitem ordens e portarias baseadas na mesma desconfiança dos outros e na estulta presunção de evitar os seus erros. Conhecida a causa ideológica do exame, não podemos esperar que o ensino superior se aproxime do que deve ser. Pelo contrário, a perspectiva socialista aumentará o poder do exame, o seu carácter judicial, a unidade nacional de seus quesitos por forma a que o estudante universitário não interrogue mas seja interrogado, até desistir de ser estudante. Plenamente integrado, será mais útil à «Sociedade» (in revista «Escola Formal», n.º 2).


(1) José Marinho, Teoria do Ser e da Verdade, Guimarães Editora.




José Marinho



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